Ruídos

Transitar entre temas provocadores como vida e morte, construção e destruição, faz parte de “Ruídos”, rota escolhida por Elias Santos. Exímio gravador, apropria-se de elementos do cotidiano, inquieto propositor de representações discursivas, o artista realiza uma proposta que parte do cotidiano das relações, adotando como objeto de reflexão o trânsito e seus desvios. A exposição retoma uma questão comum no dia-a-dia contemporâneo, a relação entre o homem e a máquina, e as sub-relações de poder que se desenvolvem entre esses dois. O artista explora os acidentes automobilísticos como uma consequência do caminho percorrido pela sociedade, o indivíduo é abordado como um ser alienado tanto de sua própria individualidade, quanto da interação com a coletividade.

O tema da exposição dialoga diretamente com todos os indivíduos que, de diferentes formas, estão inseridos num sistema pós-industrial no qual se discursa sobre a glória do progresso científico, sem dar a mesma proporção a debates sobre as novas realidades impostas por esse contexto. Como numa bifurcação, a tecnologia aplicada aos meios de transporte gerou mais que uma única via: se por um lado foi ampliada a capacidade de locomoção e circulação do ser humano, por outro surgiram novos riscos de acidentes. A ignorância dessas repercussões torna o homem contemporâneo um ser alienado à sua própria realidade. Ao desconhecer a origem das produções tecnológicas com as quais convive, o homem arrisca seu status de indivíduo, a sua capacidade de ação espontânea, e torna-se a própria máquina.  

Inserida nessa situação de vida, a estrada tornou-se um espaço prescrito e supostamente desenvolvido para oferecer conveniência e eficiência ao condutor, em troca de sua subordinação às regras que a ordenam. O acidente e a morte, elementos representados por Elias Santos, podem ser reconhecidos como falhas nesse sistema. Dessa forma, “Ruídos” expõe a interrupção, o indesejado e o inesperado, apontando para uma reflexão na busca de um novo sentido.

Ao expor as colisões ocorridas nesse percurso, as obras possibilitam a ultrapassagem da mera visão do acidente, interceptando o indivíduo na relação com o outro. Na cidade contemporânea, enquanto metrópole, as vidas passam velozmente, cruzam-se, mas não há tempo para conhecer esses cruzamentos e cada um segue seu caminho sem olhar para o lado, sem perceber a grande teia da qual faz parte. Portanto, analisar a imagem urbana, a vida que nela transcorre e suas relações, como uma rede intrincada e quase imperceptível, implica pensar o fragmento ser/estar urbano característico da estética contemporânea, ou seja, a simultaneidade existencial, desconhecida, mas que toca a todos e que é tratada de forma contundente pelo artista.

A exposição “Ruídos” compreende três vias de acesso:
A série de xilogravuras, reproduzidas em grande escala, aposta em elementos gráficos como: formas distorcidas, linhas que correm em diferentes direções e incisões que imprimem um fluxo para induzir a transmissão de sensações de movimento e impacto. A observação dessas imagens é capaz de provocar, trazer à tona, as sensações de descontrole e trauma típicas das situações de acidentes.

A interferência sonora, proposta pelo artista, desvia nossos sentidos do ambiente da galeria e de maneira indesejada nos lança a um ambiente perturbador.

A instalação “Relicários” remete às capelas construídas nos acostamentos de estradas como elementos em memória das pessoas vítimas de acidentes. Inseridas no trabalho do artista, essas construções representam a guarda ou o cuidado com a vida, vista então como uma preciosidade, uma relíquia.

Assim, a produção de sentido na proposta “Ruídos” pode ser percorrida a partir do caminho entre a semelhança das imagens representadas, os acidentes de carros/pessoas, o barulho dos carros no ambiente da galeria, sons de freadas bruscas indicam o perigo e a instabilidade do trajeto da estrada, e a simbologia da memória da morte ou mesmo a lembrança da vida como algo precioso.
A vivência urbana nos direciona a uma rota de esquecimento da origem das coisas e desentendimento do contexto. A estrada contém a paisagem ou a paisagem é que recebe a estrada? Quando estamos no controle da máquina, quem realmente controla? Nos metamorfoseamos  em carro, nos tornamos a própria máquina, assim nos machucamos, batemos, freamos bruscamente e seguimos por uma rota perigosa.

por Marjorie Garrido e Tainah Morais - curadoria










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